Crônicas de Almakia #01

Faz um tempo em que postei a Crônica #02, e o motivo de não ter postado a #01 primeiro está explicado no post. PORÉM, a coletânea fantástica acabou não saindo, e eu esqueci completamente de fazer essa postagem xD Quem indiretamente me lembrou foi o Gabriel daqui de Foz, da turma que está lendo Almakia em sala de aula. A pergunta dele era sobre almaki de luz, qual é a verdadeira utilidade dele (além de tirar fotos xD). O livro 2 é praticamente dedicado ao almaki de luz. Mas, para quem ainda não leu Além dos Segredos, essa crônica pode dar uma ideia sobre o assunto. Além, é claro, de outra coisa: Kandara. Ela foi escrita para participar da Coletânea de contos fantásticos Tratado Secreto de Magia vol. 2, acho que lá em 2012 ou 2013 (sério, não lembro quando ela foi escrita xD). Para quem quer saber um pouco mais sobre os passos da herdeira que rejeitou o título, veja como ela e o Aruk se conheceram xD

Crônicas de Almakia
– Dragão de Fogo –

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Almaki. A palavra estrangeira sempre ecoava mais familiar do que qualquer outra. O nome dado aos poderes elementares de Almakia, o maior Domínio existente, era parte de um passado que eu evitava reconhecer… e isso era tudo até então.

Morando em Lotus, a capital de Suutori, Domínio sem muito destaque no resto do mundo, acostumei-me a ver as pessoas estufarem o peito e se vangloriavam de terem conhecido um almakin, ou de terem visto um manejamento de almaki. Da mesma forma, acostumei-me com as expressões chocadas dessas pessoas quando, perdendo meu controle, demonstrava também ser um manejador. Era estranho, mas inegável: meu avô e meu pai foram almakins de Almakia. Mesmo tendo nascido no exílio, não pude escapar desse destino.

Não. Ter um almaki não é uma coisa boa. Principalmente se for um como o meu tipo. Vendo de fora, é incrível ter a capacidade de prever e adivinhar o que o tempo reserva ou esconde de alguém. Como meu avô costuma dizer em tom sonhador, só um almaki de luz pode iluminar o caminho das pessoas. Soa bonito, mas esconde uma essência aterradora: ao mesmo tempo, ele escurece o caminho do próprio manejador… literalmente.

O almaki de luz tirou a visão de meu avô desde muito cedo, e meu pai quase não enxergava quando morreu…

Mas, não cabe aqui contar sobre o preço a se pagar, os reveses da minha família, do motivo de sermos exilados ou sobre os ensinamentos do meu avô.

O almaki da luz pode nos cegar, mas não nos impede de lembrar o que já vimos e sentimos. Seguindo essa linha de pensamento, dentro do contexto do meu poder, uma lembrança pode se tornar mais preciosa do que um vislumbre… E minha lembrança preciosa é completa: tem cores, sensações, emoções… um nome e um título.

Era uma tarde quente de um dia eleito para ser o dia da organização do depósito da loja de artefatos raros e antigos do meu avô. Assim minha mãe decretou que a tarde de Aruk seria em função dos tapetes, independente do que eu, Aruk, achasse que faria de proveitoso naquela tarde. Então, entre pó, espirros, teias de aranhas e muito esforço para estender tapetes, passei horas inteiras na tarefa de batê-los diante da grande janela do depósito.

Como nunca tinha usado meu almaki daquela forma, quando meus olhos se voltaram para além da janela foi como uma simples necessidade de olhar para fora no meio de um afazer entediante. E lá estava ela, na rua, encarando desafiadoramente a porta da loja, como se também sentisse um impulso de entrar, mas sua teimosia não deixasse. Ao seu lado, havia um menino que lhe puxava as vestes imperiosamente.

De primeira reparei nas roupas e imediatamente percebi que eram estrangeiros, tanto pelo brilho quanto pela suntuosidade com que se trajavam. Depois, aqueles cabelos cheios, avermelhados pelo sol, como se criaturas cheias de tentáculos tivesse criado raízes em suas cabeças.

Quando comecei a achar graça no que via, ela olhou para cima, diretamente para mim, e tudo me atingiu como um golpe.

Ao mesmo tempo em que me sentia tombando para trás em um movimento impossivelmente lento, uma série de imagens desconexas com aquela garota passaram na minha frente. O que parecia ser a voz dela ressoou nos meus ouvidos, usando palavras que me eram familiares. Mesmo que na época eu não fosse um exemplo em falar a língua de meus antepassados, compreendi claramente o sentido: É meu direito queimar qualquer um que ouse ficar no meu caminho. No mesmo instante, percebi que ela era terrível. E, ao mesmo tempo, percebi que ela precisava ser terrível.

Quando bati contra o chão a lentidão cessou. Olhei em volta, assustado. No tempo em que eu conseguir entender o que acontecera e descer correndo para a loja, a garota havia entrado.

Minha mãe perguntava o que queriam, mas ela apenas olhava em volta, com uma expressão de quem não sabia o motivo de estar ali. E isso a irritava. O menino mexia em tudo que estivesse ao seu alcance, curioso. Parecia alguém que nunca entrara em lojas antes e não entendiam que aquelas coisas ali não eram suas. Fiquei lá, paralisado, observando.

Então, meu avô se levantou do seu canto habitual e se aproximou deles. Perguntou, em um tom de quem já sabia e só faltava acreditar:

– A Dragão de Fogo?

Era um título. Reconheceria essa denominação e tudo o que ela representava mesmo que meu almaki não tivesse me mostrado.

Ela o analisou com um ar de desprezo, intrigada provavelmente pelo fato de ele ser cego. Não confirmou.

Parecendo não perceber essa reação, me avô avançou até ela, sem se importar por onde estava indo, e acabou tropeçando e tombando para frente. E, contrariando sua aparência arrogante, a garota o amparou.

O menino parou de mexer nas estantes. Com um pote nas mãos, olhou raivoso para a cena, como se não acreditasse na ousadia daquele velho usando a garota como apoio.

E foi quando tudo aconteceu.

Se não tivesse ocorrido o mesmo comigo instantes antes, não teria entendido que aquela expressão assustada e a respiração ofegante dela indicavam uma visão de almaki de luz criada pelo meu avô. O menino, por sua vez, não entendeu e avançou para defendê-la do que presumira ser um ataque. Mesmo sem ver, meu avô pegou a mão dele antes que o pequeno punho o acertasse e houve um lampejo de luz, que o paralisou, deixando-o com olhos desfocados e distantes. O pote caiu no chão, quicou duas vezes e se despedaçou.

Registrei aquele cenário perfeitamente em minha mente, com todos os detalhes. Mas, entre a expressão apavorada de minha mãe, o rosto ansioso de meu avô e o menino perdido dentro de si, a única coisa que eu via era a garota. Mais uma vez seus olhos se voltaram para mim, agora como se me conhecessem, e novamente houve lentidão a minha volta. A voz dela que ouvi dessa vez não pareceu carregada e terrível. Era a mesma, mas em um tom mais calmo, mais suave e que parecia muito mais adulto: um dia a chama de Kandara irá se apagar, mas a luz de Aruk ainda procurará na escuridão. Não desista dessa herdeira de Fogo que sou agora…

Então toda a sensação foi quebrada pela porta da loja se abrindo em um estrondo, e uma senhora entrando:

– KRISSION! KANDARA! – ela chamou pelo que eu, sem saber, sabia que eram os nomes da garota e do menino.

Irritada, a senhora despejou o que pareciam ser repreensões na língua deles, e que falada por ela não me era incompreensível. Vendo o estrago e imaginando que tudo era resultado de uma confusão causada pelos protegidos, ofereceu dinheiro para minha mãe, indicando o pote destruído no chão.

Foi meu avô que recusou, deixando-a surpresa. Nesse tempo, a garota saiu da loja, furiosa, arrastando o menino com ela, nem de perto correspondendo com o que meu almaki revelara. Logo depois a senhora largou as moedas em cima do balcão, e também saiu sem dizer nada.

Foram apenas alguns instantes, onde toda a minha percepção esteve ampliada pelo meu almaki. Entretanto, inconscientemente sabia que minha vida nunca mais seria igual dali por diante.

Minha lembrança de Kandara sempre teria a cor avermelhada, como seus cabelos sob o efeito do sol. Sempre me lembraria dela com a sensação de estar queimando junto com as palavras que ecoaram em minha mente. A emoção sempre seria algo tão forte que me arrancaria da realidade e me faria divagar sem rumo. E o nome dela sempre estaria associado ao seu título: Dragão de Fogo, aquela que irá ditar o rumo de Almakia e Almakia será o que ela for.

***

Dois anos depois, em uma noite chuvosa, despertei com um pressentimento. Corri escadas abaixo, pulando o máximo de degraus que podia, e abri a porta da loja antes que soassem as batidas.

Ela não tinha mais as vestes suntuosas. Haviam sido trocadas por algo muito mais humilde, molhado e sujo de dias de viagem. O cabelo não tinha a cor de antes, e pareciam tão escuros quanto a noite atrás dela. Os olhos estavam mais fundos e tinham um brilho diferente, como se tivessem perdido alguma coisa. Meu almaki não se manifestou quando ela me encarou, e eu não soube como reagir. Então, abrindo um grande sorriso – algo que eu nunca imaginara caber naquele rosto –, ela segurou melhor as alças da sua mochila e perguntou, na língua de Suutori com um inconfundível sotaque almakin:

– Será que… uma desertora… teria um lugar junto aos exilados?

Entendendo a tristeza profunda e o desespero que ela escondia atrás daquelas palavras brandas e daquele sorriso, abri espaço para que entrasse.

Aconteceu exatamente como deveria acontecer. Com nenhum de nós imaginando que aquele era o começo do que iria redefinir o nosso mundo. Kandara havia compreendido e aceitado o caminho que meu avô previra para ela. Agora só restava que seu irmão, o pequeno Krission, aceitasse seu destino. Ainda restava que o novo Dragão de Fogo compreendesse que seria ele a ditar o rumo de Almakia, e que seu rumo seria ditado por quem ele aprendera a desprezar acima de tudo.

***

Sim, pretendo escrever outras crônicas. Entretanto, no momento a prioridade é escrever os livros que preciso terminar, tanto da série Almakia quanto os outros 😀 Mas, vai que a inspiração venha…

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